03/05/07

Da Natureza Humana.(?)...



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Para minha vergonha tenho de admitir que durante
muito tempo julguei que o sofrimento dos animais me
tocava menos do que o do meu semelhante.
Pelos vistos era isso ilusão que a mim me dava, ou o
resultado de algum mecanismo de autodefesa do subconsciente
que, creio, vai fraquejando com o correr dos anos, pois hoje
em dia o presenciar da dor do mais humilde dos bichos
torna-se-me intolerável.
Aqui na aldeia, entre gente insensibilizada por hábitos seculares
de maus-tratos às bestas de carga e aos animais domésticos ou
selvagens, quando alguém desata aos pontapés a um cão ou às
varadas a um burro, o remédio é fechar os olhos, fazer-me surdo,
e algumas vezes deitar a fugir.
Meter-me de permeio não seria aceite.
Ninguém compreenderia a razão de semelhante atitude,
e resultaria infalivelmente em me tornar objecto de ridículo
e desdém, o que num meio pequeno tem consequências iguais
às da antiga pena do ostracismo.
Forçado, pois, a aceitar a minha cobardia, evito o mais que posso
as situações penosas e, usando de manhas, uma vez por outra
consigo desviar a atenção dos carrascos (há-os de ambos os sexos)
o tempo suficiente para que a vítima lhes escape ou eles, distraídos,
esqueçam o tormento.
Mas a vida, com as suas infindas surpresas, apraz-se a provar a
futilidade dos nossos esforços. E assim hoje, quando ao fim da
tarde parei à porta do senhor Arnaldo para dois dedos de conversa,
não vi mal em aceitar o convite que ele me fazia para, na sua sala,
me mostrar"uma coisa muito linda" que lá tinha.
Entramos, sentei-me num aparatoso sofá coberto de plástico,
a penumbra das persianas corridas mal deixando aperceber
oque me rodeava.
Hospitaleiro, o meu anfitrião foi ao armário, tirou de lá a garrafa
de vinho fino e dois cálices. Encheu-os, bebemos um gole, falámos
do calor, do reumatismo, do descaso que os médicos fazem dos
doentes,da sabedoria de há anos termos ambos deixado de fumar.
Bebemos outro gole. Falámos da pena que é os padeiros já não
cozerem pão centeio, tão saboroso e bom para a saúde, e a
tolice das pessoas que deixaram de plantar cebolas, couves,
tomates e batatas, e preferem ir comprá-las à mercearia.
‘Então, que coisa é que me queria mostrar?’ perguntei eu, ao ver
que a conversa se arrastava.‘Está na cozinha, já lha trago.’
Levantou-se, praguejando baixinho contra as dores nas costas,
e dali a nada voltou com uma caixa de madeira que teria no
máximo vinte centímetros de comprimento, outros tantos de
largura, e aí uns dez de alto. Um único lado era coberto de rede
fina.Naquela enxovia, amontoados uns sobre os outros,
a tremelicar,dando chilreios aflitos, os bicos desmesuradamente
abertos na angústia do medo, da falta de espaço, e talvez também
da sede e da fome, amontoavam-se cinco ou seis pequenos melros
que osen hor Arnaldo tirara dum ninho.Ele achava graça àquela
aflição dos pássaros, queria que eu olhasse.
Eu, agoniado, desviava os olhos.
Perguntei-lhe se não seria melhordeixá-los voar, e ele riu-se
da tolice.
‘Olhe que não voavam. E morriam logo.’Contou-me depois que tinha
a ideia de lhes fazer outra gaiola,pois aquela era pequena demais e
eles cresciam depressa.Mas por experiência que já tinha doutros
anos, às vezes acontecia que, como quase se não podiam mexer,
os melros ficavam tolhidos.
‘Sabe então o que lhes faço?’Eu não queria ouvi-lo, mas o
senhor Arnaldo continuava a fitar-me,esperando a minha atenção.
‘Chamo o gato e atiro-lhe um de cada vez. E como eles esvoaçam,
ainda é mais engraçado do que com os ratos. `Quer ver?’
Abanei a cabeça,e numa inspiração de desespero,
mas sem exagerar o gesto,levei as mãos ao peito.
O senhor Arnaldo quis saber se era do coração.
Respondi-lhe que sim,que de vez em quando sentia
umas arritmias.
Felizmente o médico tinha dito que não era grave.
‘Ah! Os médicos!’Levantei-me e caminhei para a porta
com lentidões de doente.
Os melros continuavam a chilrear apavorados.
Bondoso, o senhor Arnaldo tomou-me o braço, recomendou
cuidado com os degraus, sugeriu acompanhar-me até casa.
Agradeci, disse-lhe que não era preciso. E como se a ideia
me ocorresse de momento, perguntei-lhe que tamanho ia
ter a nova gaiola para os melros.
‘Os melros?’ o tom de surpresa e o franzir dos lábios a
mostrar que já os tinha esquecido.
‘Sabe, uma gaiola bem feita dá um trabalhão. E acho que não
vale a pena. Eles estão ali há duas ou três semanas,
com certeza não se aguentam em pé.
Amanhã ou depois atiro-os ao gato.’"


José Rentes de Carvalho
(in Tempo sem tempo - diário de Maio 1999 a Maio 2000 )




4 comentários:

PAH, nã sei! disse...

Desculpa-me Maria... mas há cada cabrão!!!

Feliz ou infelizmente sou daquelas que não me contenho quando vejo alguém a maltratar um qualquer animal. Já me chamaram de extremista por andar mais de meia hora a tentar safar um abelha de uma sala... enfim..
Mas que mal é que o bichinho lhes fez? Têm tanto direito quanto nós...!!!!!!!

Mas isto sou eu...

Teresa David disse...

O que este texto me fez lembrar é principalmente a grandeza dos animais em relação ao humano quando estão em sofrimento. Qualquer pessoa, salvo honrosas excepções, queixa-me, geme, cai em cobardes hiponcondrias. Já assisti á morte de vários dos animais que fizeram o favor de serem meus companheiros ao longo da vida. A sua dignidade e aceitação da morte é um exemplo que todos nós deveriamos seguir.
Espero que esteja tudo bem convosco,e que a "lindona peluda" não esteja a passar mal.
Mts bjs e até sempre
TD

MJ disse...

E são os seres humanos considerados animais racionais!Alguns são piores do que bestas!

Um beijo, linda*

ASPÁSIA disse...

OLA LENA

FIQUEI MTO CHOCADA COM ESSE RELATO. É DAS ALTURAS EM QUE SINTO VERGONHA E NOJO PELA ESPÁCIE HUMANA? A Q PERTENÇO.

SEMPRE FIZ DE TUDO P SALVAR BICHOS.
UMA VEZ QD ESTAVA NA TELEPAC EM CARNAXIDE APENHEI UM CAO VADIO Q ESTAVA CAÍDO HA VARIAS HORAS A BEIRA DA ESTRADA. PASSEI DE MANHA E VI-O PASSEI A TARDE E VI DE NOVO. FUI VER O Q SE PASSAVA... OLHA ACHO MELHOR DEPOIS CONTAR ISTO NO MEU BLOG...

AQUI EM CASA NEM UMA MOSCA OU ARANHA MATO. APENAS O Q MATO SAO AS BARATAS E AS MELGAS POR Q NAO AS POSSO APANHAR VIVAS MEM ENXOTAR...

UMA VEZ APANHEI COM UMS PANOS E GANDES TRABALHOS UM OSGA AINDA JOVEM P NAO A MATAR E DEITEI A P UM BALDIO...

ESSE TAL ARNALDO ERA UMA ESPECIE DE NERO ESTA VISTO! MAS É A IGNORANCIA Q CRIA ESSES MONSTROS... JA OS PAIS DELE FARIAM O MESMO..

TENHO ANDADO C OS OLHOS MTO INFLAMADOS E C DORES. DE MODO Q PARA LER OS POST MAIS LONGOS, COMO O TEU E O DA TERESA TEVE Q SER C COM O LEITOR DE ECRAN Q É O Q ME VALE QDO ESTOU ASSIM.

BEIJINHOS


passearam no meu país...

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